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17 janeiro 2006

O reverso da paz

....Recebi este texto e com muito gosto publico ele aqui no meu blog. A autoria é de Franciele Spohr. Não vou falar nada dela, pois o texto revela a categoria desta menina.


No Iraque morre gente, na África morre muita gente. Nos morros em Porto Alegre morre gente todo o fim de semana, no Rio de Janeiro morre muita gente. Não vou discutir a validade, as razões, os tipos, os certos e errados nessas guerras todas. Nós já sabemos muito bem do que se trata, bem demais até, nos incomoda, preferíamos nem saber, afinal, nós gaúchos do interior, do Vale do Taquari, somos tão pacíficos graças à Deus que preferíamos nem ficar sabendo disso tudo. Porque temos que assistir a esse banho de sangue, na delícia mansa dos nossos lares bem nutridos se nós não temos nada a ver com isso? Por isso, eu não vou falar sobre a guerra, mas sim, sobre o lado
pejorativo da paz.

Eu vou falar sobre fazer e aceitar qualquer coisa em prol de uma falsa paz. Eu vou falar especificamente sobre Lajeado. Apesar do aumento perceptível e apavorante da criminalidade em todas as cidades da região, louvamos acreditar que ainda nem chegamos perto da incivilidade da maioria do país, não temos os traficantes das favelas cariocas, não temos o coronelismo do norte e nordeste, não temos violência de ordem sexual nas nossas famílias bem planejadas e amorosas, todos os cidadãos se amam e se respeitam, todo mundo criado com os melhores valores possíveis.

Mentira deslavada e perigosa. Lajeado é uma cidade que transpira violência e caminha para a explosão. E eu não estou falando do perigo que vêm da miséria. Eu falo do perigo que vêm dos que tem poder. Poder é muitas vezes uma questão de status. É, por exemplo, você que nasceu e se criou no centro da cidade de Lajeado, muito urbano e moderno, debochar dos colonos quando é criança, desprezar os colonos na adolescência e se julgar no direito de passa-los para trás quando for um profissional, porque afinal, colono é tudo burro mesmo. Cá entre nós, todo mundo conhece alguém que acha que colono é "sub-gente", assim como, claro, também todos os negros, indígenas e gays que porventura tiverem coragem de morar aqui. Todos esses tipos são imediatamente identificados, marcados, desprezados e, se necessário, perseguidos.

Me parece que atualmente os gays ganharam uma trégua (ah, sim, é um presente ser aceito pela sociedade daqui!), desde que aceitem o status de "amiguinhos-fofos-de-madame", figuras pitorescas, quase podlles. Veja bem, não digo que eles sejam isso, muito pelo contrário, mas são transformados nisso, para serem aceitos. Ou você acha que um gay assumido, discreto e atuante se elegeria alguma coisa nessa região? Gays declarados podem até ter uma vaga no cemitério negada! Poder é muitas vezes uma questão de intimidação branca.

Os que ameaçam vidas e integridades usam terno e gravata, tem pelo menos uma empresa no bolso e dois carros na garagem da sua casa enorme e bem ajardinada. Então eles são gente decente. Então eles podem e sabem o que estão fazendo e não fariam nada de ruim pra "gente de bem", se eles atentam contra alguém, é porque a pessoa merecia. Essas histórias nunca vêem a tona. Também não vêem a tona que gente de bem é só que tem muito como eles. Também não vêem a tona o que eles cometem contra os filhos dos outros ou contra os seus próprios filhos e filhas. E, quando por acaso, uma bomba dessas explode e a sujeira voa pra todos os lados, os processos são absurdamente sigilosos, nenhum desses aparece em página policial e nem será punido. Todos desistem e calam. Poder é muitas vezes uma questão de ignorância e ganância. Essas duas coisas misturadas parecem conceder o direito de um atendimento precário na maioria dos serviços prestados nessa cidade. Claro, se você for um ninguém sem parentes importantes como eu, que, por exemplo, tenho pago mais de R$100,00 de condomínio por mês, para morar num prédio velho, sem elevador, sem portaria, sem área de lazer, sem gás central, sem assessoramento financeiro (a orientação é que nós mesmos devemos cobrar os condôminos que estão em atraso, caso contrário, os pagantes em dia arcam com a dívida). Desses R$ 100,00, o que eu ganho é uma limpeza nos 4 andares de escada e água. Mas eu sou obrigada a ficar quieta e não reclamar. Poder é muitas vezes uma questão de hereditariedade sim. Aqui, tanto quanto como no Pará com seus coronéis. Não é porque não há tiroteio nas ruas
que isso é menos verdade. Amigo meu que esteve aqui de visita pela primeira vezes, passou dois dias na cidade e já percebeu. Me perguntou se a cidade pertencia há duas ou três famílias. Eu respondi que sim. Tanto são donas da cidade que tem o direito de dever quanto e pra quem quiserem. Eles não precisam pagar suas contas. Nem prestar contas de seus desmandos. E o pior
são os galhos mais novos dessas famílias, que vão crescendo imersos nesses abusos e cada vez mais arrogantes e prepotentes. Logo logo vamos estar queimando mendigo, isso se já não estiver acontecendo, só não veiculado.

Quando reclama você é louco, baderneiro, mal-humorado, arruaceiro, revoltado, persona non-grata. Quando você reclama, está se metendo onde não é chamado, está provocando, está bagunçando a ordem, está sendo violento. Quando você reclama, é humilhado, retalhado, perseguido e ameaçado.
Está perturbando a paz de uma cidade tão bonita. Lajeado é bonita sim. Nos pátios, nos parques, nas calçadas, na superfície. Nos quartos, porões, embaixo da pele e dentro dos cofres, Lajeado é horrível. E uma guerra contra isso vale a pena ser comprada, porque se você, como eu, só tiver o
direito de viver em paz com a cabeça baixada pra tudo, acabará incapaz de
lutar contra a bota que se aproxima cada vez mais das nossas cabeças. Amassados com consentimento.. Esse é o troco da paz de mentira.


Francieli S.